segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O Orador dos Mortos

Trecho do livro O Orador dos Mortos, capítulo 16 - A Cerca:
    Um grande rabino está ensinando na praça do mercado. Aconteceu, naquela manhã, que um marido descobriu prova do adultério de sua mulher, e o populacho carrega-a para a praça, para apedrejá-la até a morte. (Há uma versão mais familiar desta história, mas um amigo meu, Orador dos Mortos, contou-me sobre dois outros rabinos que enfrentaram a mesma situação. São estas as que vou lhe contar)
O rabino avança e põe-se ao lado da mulher. Por respeito a ele, o povo espera, ainda sopesando as pedras. "Será que há alguém entre vocês", diz a eles, "que nunca desejou a esposa de outro homem, o marido de outra mulher?"
    Eles murmuram, e respondem: "Todos conhecemos o desejo. Mas, Rabbi, nenhum de nós o seguiu"
E o rabino disse: "Então ajoelhem-se, e dêem graças a Deus, por tê-los feito fortes". Leva a mulher pela mão, para fora do mercado, e antes de despedi-la, diz-lhe em voz baixa: "Vá dizer ao magistrado quem salvou sua amante. Então ele saberá que sou seu servo leal" •
Assim, a mulher foi salva, porque a comunidade é corrupta demais para proteger a si mesma da desordem.

    Um outro rabino, outra cidade. Vai até ela, e detém a multidão, como na outra história, e diz: "Qual de vocês é sem pecado? Que atire a primeira pedra"
As pessoas ficam chocadas e esquecem o propósito único que tinham, na memória de seus pecados individuais. Algum dia, pensaram, eu poderei estar na situação desta mulher, e gostaria de ser perdoado e ter uma nova chance. Devo tratá-la do jeito que gostaria de ser tratado.
Enquanto vão abrindo as mãos, deixando as pedras cair, o rabino pega uma, levanta-a sobre a cabeça da mulher, e ataca com toda a força. Esmaga o crânio dela, espalhando os miolos pelo calçamento de pedra.
"Tampouco eu sou sem pecado", ele diz ao povo, "mas se deixarmos apenas gente perfeita aplicar a lei, logo a lei estará morta, e nossa cidade, com ela".
Portanto, a mulher morreu porque a comunidade era rígida demais para tolerar seu erro.

    A versão famosa dessa história merece nota por ser tão rara em nossa experiência. A maioria das comunidades cambaleia entre a podridão e o rigor mortis, e quando vão muito para um dos extremos, morrem. Só um rabino atreveu-se a esperar de nós um equilíbrio tão perfeito a ponto de preservarmos a lei e perdoarmos o erro. Então, é claro, nós o matamos.